Jurgen Klopp e Eduardo Galeano
- Matheus Tatsch
- 2 de mai. de 2015
- 3 min de leitura
No mês de abril, o mundo sofreu uma grande perda. Como um punhado de areia, nos escorreu por entre os dedos a genialidade de Eduardo Galeano. O escritor uruguaio, de longe meu favorito, nos deixou demasiado cedo e por mais que tenha, também, deixado obras do tamanho da sua perspicácia, nada nem ninguém pode me consolar do estrondoso fato que é ter consciência de que não verei nenhuma página nova, nenhum comentário audacioso, nenhum outro livro que desafie o sistema e suas rigidezes como o fez com tamanha maestria Eduardo Galeano.
No mês de abril, o nosso clube sofreu uma grande perda. Jürgen Klopp anunciou sua retirada, visando novos voos para as mesmas estrelas. Nós sabemos: um jogo de futebol, a carreira, a vida e todas as outras coisas que arduosamente são escravas do tempo estão sujeitas a essa impiedosa e angustiante ampulheta que não mede esforços para apedrejar nossos planos. Klopp deixa a muralha amarela com a imponência que ela há anos não tinha.
É óbvio que não quero aqui comparar o tamanho das perdas, quero, isto sim, unir a glória das genialidades.
A partir daquele anúncio, os últimos meses de Klopp no Borussia começaram a decorrer com a velocidade de um grão de areia jogado ao vento. A partir daquela notícia, desvirei, revirei e virei eu mesmo livros de Eduardo Galeano e na introdução ao célebre Futebol a Sol e à Sombra encontrei:
"Por sorte ainda aparece nas canchas, ainda que seja muito de vez em quando, algum descarado sem-vergonha que sai do roteiro e comete o desaforo de driblar toda equipe rival, e o juíz, e o público das tribunas, pelo puro prazer do corpo que se lança à proibida aventura de liberdade."
Naquela época, ao ler tal trecho, logo pensei: Eduardo Galeano, tu foste esse descarado que saiu completamente do roteiro e cometeu o desaforo de driblar toda a equipe rival, o juíz e o público, pelo puro prazer do corpo que se lança à proibida aventura da liberdade. Teus escritos libertaram, libertam e libertarão e nós seguiremos caminhando, por ti, em direção ao horizonte e à utopia.
Essa semana, Jürgen Klopp viveu um dos seus últimos momentos de glória no clube aurinegro. Pela fase que sofremos e a fase que vive o adversário, pareceria um relato surrealista a narração que farei a seguir, fosse feita algumas semanas atrás. Jogando fora de casa, com um a menos, o Borussia Dortmund eliminou o Bayern de Munique com a angústia pintada na cal, sendo que os bávaros não foram capazes de acertar nenhuma das quatro cobranças.
São detalhes, meros detalhes, de mais um jogo de futebol. Porém, o diabo e os deuses estão nos detalhes. Certamente a cena mais marcante desse clássico não aconteceu durante o jogo, mas segundos após a penalidade derradeira de Neuer, em um instante que para muitos não passaria de detalhe.
Neuer estoura o travessão - aquele mesmo que tantas vezes o salvou. Apita o árbitro. Nas casamatas, Pep Guardiola, ele próprio digno de ser consolado, dirige-se a campo para consolar seus lutadores, enquanto que por ele, passa - ou melhor, voa - com um ímpeto majestoso, bravando e blasfemando a todos os santos, Jürgen Klopp. Sem vergonha de celebrar seus êxitos, descarado para fugir àquela falsa seriedade dos treinadores que agem como se tivessem uma bola de cristal, sem formalidades para saudar o adversário, Klopp voou, com os braços abertos, em direção aos seus protegidos - que tantas vezes o protegeram. Pep apenas esgueirou uma olhada, cabisbaixo. Sua tristeza, no entanto, sabe-se, revela admiração. E eu compartilho dessa admiração.
Jürgen Klopp, com tantos estratagemas e intelectualidades que foi capaz de colocar em campo, não se conformava com a mera prática por parte dos jogadores. Era ele, também, um jogador, a cada vibração, a cada discussão com o quarto árbitro, a cada corrida frenética em direção ao nada para celebrar um gol. Era ele, também, esse louco descarado e sem-vergonha que quis sair do roteiro, que quis esbravejar quando a cartilha demandava silêncio, chorar quando a cartilha demandava imparcialidade e foi impávido quando a cartilha demandava respeito. Jürgen Klopp cativou pelo talento, pelos títulos, mas, sobretudo, pela emoção. Sua emoção não lhe permitiu se conter à posição de singelo espectador; ele sentiu também a necessidade de correr, dançar e voar pelo campo pelo puro prazer do corpo que se lança à proibida aventura da liberdade.
E por mais que a ampulheta tenha finalmente virado, o meu agradecimento não é uma dessas coisas que impiedosamente são escravas do tempo. O meu agradecimento é eterno.
Obrigado, Eduardo. Obrigado, Jürgen.
Comentários